"É
natural que a medida do corte de acesso possa vir a ser tomada,
depois de vários avisos ao utilizador, mediante decisão
judicial". Estas foram as palavras da Ministra da Cultura
acerca das pressões da indústria de conteúdos sobre as medidas a
tomar face a quem faz cópias privadas de conteúdos protegidos. O
episódio acontece no seguimento de vários outros pela Europa,
nomeadamente em França e Inglaterra, onde é proposta uma política
de "três avisos": uma pessoa que seja detectada a fazer
cópias de obras protegidas por direitos de autor corre o risco de
ver o seu acesso à internet cortado. Isto numa altura em que já a
Finlândia e a Espanha consagraram o acesso à internet como um
direito fundamental da população. Nestas preocupantes medidas não
existe qualquer distinção entre cópia privada para uso pessoal e
cópia para fins lucrativos. Quem saca, arrisca.
A
discussão não é nova e, mesmo nos sectores mais progressistas, é
difícil encontrar-se consenso quanto ao equilíbrio entre os
direitos fundamentais de cidadania e o direito dos artistas à
distribuição da sua obra. Mas vamos concentrar-nos noutro aspecto:
começaremos por mostrar que a lei portuguesa permite a cópia para
usufruto pessoal (como garante do direito do acesso universal à
cultura) e já prevê mecanismos de compensação dos artistas.
Finalmente, vamos contrapor esses dois factos à situação agora
verificada, em que os próprios representantes do Estado, sob a
pressão da indústria, parecem esquecer a lei em vigor.
No
site da Associação Portuguesa do Direito Intelectual (APDI),
encontramos o parecer jurídico "Cópia Privada e Sociedade da
Informação", da autoria do Prof. Dário Moura Vicente. Este
parecer é esclarecedor quanto ao estatuto legal da cópia privada.
Vamos resumir o parecer, tentando reduzir ao mínimo o legalês (caso
não haja paciência para ler tudo, não há problema em saltar para
o ponto seguinte; mas vale a pena, porque é uma compreensão lúcida
de pormenores da lei de direitos de autor que ajuda a ver a questão
com outros olhos).
A
Cópia Privada e a Sociedade da Informação
Existem
vários interesses envolvidos na produção cultural: para além dos
interesses morais e patrimoniais dos autores, na figura do direito de
autor, estão também consagrados os interesses colectivos da
sociedade, materializados na prioridade ao livre acesso à cultura.
Dentro destes interesses colectivos, figuram as utilizações livres,
nas quais se inclui a cópia privada sem fins lucrativos.
As
novas tecnologias vieram facilitar a realização de reproduções
para uso privado, desde a reprografia até à digitalização. Como o
controlo das reproduções se torna impossível, e como a cópia se
torna efectivamente massificada graças aos media digitais (entre os
quais as redes peer-to-peer),
procurou-se encontrar uma solução de compromisso que compense as
entidades de gestão colectiva de direitos de autor e conexos. Aliás,
a proibição da cópia digital privada seria incompatível com a
Directiva europeia 2001/29/CE, transposta também para a lei
portuguesa.
Uma
das soluções apresentadas para resolver a situação seria o uso de
medidas tecnológicas de protecção dos conteúdos, mais conhecidas
como DRM. No entanto, mesmo os DRM não conseguiram assegurar que a
cópia privada pudesse ser contida e/ou gerida, e em muitos casos até
limitaram usos legítimos dos produtos em que foram aplicados.
A
resposta aos eventuais prejuízos da exploração pela existência do
direito à cópia privada foi a consagração de uma 'compensação
equitativa' pela cópia privada. Ou seja, no preço de venda ao
público de todos os suportes graváveis que permitam a gravação e
reprodução de obras, inclui-se uma quantia 'destinada a beneficiar
os autores, os artistas, intérpretes ou executantes e os produtores
fonográficos e videográficos' (lei 62/98, 1/Set). Tal inclui as
bibliotecas e outras entidades públicas ou privadas que realizem
fotocópias, também elas sujeitas a essa 'taxa'. Os valores
estabelecidos foram:
-
no caso das fotocópias e outros suportes, 3% do preço sem IVA;
-
no caso dos suportes áudio e multimédia (cassetes, CD's, DVD's),
entre 0.13 e 1.00 €, consoante o suporte.
Para
a gestão dos montantes gerados por este tributo, foi criada a
Associação para a Gestão da Cópia Privada (AGECOP), a quem
compete recolher as quantias cobradas para esse fim junto das
entidades públicas e privadas que forneçam serviços de reprodução
de obras ou vendam suportes físicos para esse fim.
O
parecer conclui pela legitimidade da cópia privada no ambiente
digital, considerando que existe a contrapartida social e económica
na figura da compensação equitativa. No entanto, não deixa de
apontar várias lacunas e falhas deste regime: são afectadas
utilizações que não abordam obras e prestações protegidas; os
pagamentos não revertem muitas vezes para os titulares dos direitos;
é distorcida a concorrência no mercado internacional.
São
finalmente lançados alguns avisos face ao risco de combinar a
compensação equitativa com modelos de licenciamento e gestão
individuais, que podem eventualmente resultar em 'prejuízo do acesso
do público à informação e à cultura, ou na obtenção pelos
titulares de direitos de um ganho indevido à custa dos utentes
mediante um duplo pagamento por estes'.
E
então?
Deste
parecer jurídico, importa reter dois pontos fundamentais:
1.
O direito à cópia privada está consagrado na lei portuguesa, sob
os seguintes termos: é lícita, 'sem o consentimento dos titulares
de direitos, a reprodução de obras e prestações protegidas para
fins exclusivamente privados, ou seja, a reprodução que é levada a
cabo por uma pessoa singular, sem fim lucrativo, visando satisfazer
necessidades pessoais do utilizador ou dos seus próximos' (CDADC,
Artº 75). Permanecem assim ilegais as situações onde haja fins
lucrativos, mas a cópia para usufruto pessoal está inequivocamente
autorizada.
2.
Para compensar o eventual prejuízo causado pela salvaguarda deste
direito, o compromisso que se encontrou entre os representantes dos
autores e o público (através da figura do Estado) foi a imposição
de uma taxa sobre os suportes físicos que sirvam para a reprodução
de material cultural, que é paga desde 1998. Ou seja, o assunto está
resolvido já há algum tempo: pelo direito que temos de aceder
livremente a bens culturais (protegidos ou não por direitos de
autor) usando os meios técnicos disponíveis (cassetes, CD's, sites
ou redes peer-to-peer),
pagamos uma taxa para compensar os autores.
Normalmente,
a discussão sobre o direito à cópia dispersa-se por pormenores
sobre a legitimidade do direito de autor, a proporcionalidade dos
lucros das indústrias, a justiça (ou não) de haver multidões que
baixam músicas para os seus leitores MP3 e o efeito que este acesso
universal na visibilidade dos artistas e das suas obras - e todas
estas questões são fundamentais num debate alargado sobre a cultura
nos nossos dias. No entanto, costuma ser argumentado que qualquer que
seja a situação, estão a ser cometidas ilegalidades, e que "a
lei é a lei".
E
o que é, afinal, a lei? A lei diz-nos que a cópia, feita para nós,
para nós ouvirmos ou vermos, corresponde ao direito fundamental de
acesso livre à cultura. Mais: a lei foi também adaptada para
responder às exigências dos artistas em relação à compensação
que lhes seria devida por esse estatuto.
À
luz de tudo isto, tornam-se incompreensíveis as recentes palavras do
governo acerca de medidas repressivas face à cópia privada. E
torna-se insultuoso ver a indústria a defender o corte do acesso à
internet ou o seu controlo quando a própria indústria propôs a
taxa aos media graváveis como forma de ser compensada pela
existência de um estatuto que permite a cópia privada.
Da
ordem do bizarro são as medidas de controlo do acesso a redes
peer-to-peer.
Como é possível saber que conteúdos estão a ser transferidos sem
estar a violar o artº 194 do Código Penal Português, que pune
especificamente a violação de correspondência e telecomunicações?
Como seria possível distinguir entre um ficheiro copiado para uso
privado, e outro para fins lucrativos? A única resposta que a
indústria tem é a repressão indiscriminada, sem qualquer sinal de
estar disposta a considerar os usos legítimos que a própria lei
assegura. Usa redes peer-to-peer?
É pirata, corte-se a ligação, e vai com sorte de não levar um
processo.
Aos
'piratas' é atribuída a culpa da perda de receitas da indústria.
Não se cita qualquer estudo que demonstre essa perda; os jornais de
referência repetem o 'diz-que-disse' dos representantes da
indústria. Os piratas são responsáveis pelo declínio dos
video-clubes, lê-se, sem qualquer referência ao aparecimento de 'TV
boxes' vendidas pela Vodafone ou PT que tornam o aluguer de filmes
muito mais prático e cómodo.
Mas
mesmo aceitando a tese da perda de lucros, surpreende que uma
indústria tenha uma quebra de receitas quando trata o seu
público-alvo desta forma? Passando 'sketches' a apelidar o público
de criminoso antes de cada filme, introduzindo métodos invasivos de
protecção à cópia que muitas vezes restringem os usos legítimos
do produto comprado, e propondo mesmo a monitorização e controlo
das ligações e transmissões privadas?
Somos
naturalmente sensíveis às preocupações dos artistas no que toca
às insuficiências do sistema de remuneração, que peca por uma
distribuição deficiente das verbas obtidas entre os artistas, entre
outros defeitos. É necessária abertura para repensar o direito de
autor e a compensação à luz das novas tecnologias. No entanto, o
silêncio dos artistas perante a real ameaça a direitos fundamentais
de cidadania do seu público merece ser mencionado.
Pelo
seu lado, a indústria sublinha que se está nas tintas para o
público e defende que os litígios que a envolvem sejam resolvidos
por uma entidade administrativa e não pelos tribunais (que 'tornam o
processo demasiado lento', segundo o director-geral da AFP).
Considerando que esta situação está prevista na lei, isto é muito
grave.
Mas
a questão mais perturbadora é a seguinte: como é que uma ministra
de um Estado de Direito pode ir nesta conversa, esquecendo (?) a
existência de uma lei que protege a cópia privada?
Ricardo Lafuente: vai alternando
entre os ofícios de artista, designer, hacker e investigador de
novos media. A sua tese final de mestrado debruçou-se sobre
tipografia digital. O seu trabalho teórico e prático concentra-se
nas implicações políticas, técnicas e sociais das novas
tecnologias nas várias vertentes artísticas.
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