A inserção externa dependente da economia portuguesa continua
a gerar fortes desequilíbrios nas nossas relações económicas. Como seria de
esperar, esta inserção foi aprofundada pelo ciclo de liberalização dos últimos
vinte anos e pela aptidão dos grupos económicos rentistas, reconstruídos por
irresponsáveis privatizações, pelos sectores de bens não transaccionáveis, como
o imobiliário ou as auto-estradas.
A falta de competitividade da economia portuguesa levou Olivier
Blanchard, um famoso economista francês com credenciais impecavelmente
ortodoxas, a prescrever, em 2006, uma receita clara para "resolver" este
problema económico português: reduzir os salários nominais em 20%. Os salários
como única variável de ajustamento revelam o esforço insensato de muitos economistas
para reduzir o trabalho humano ao estatuto de uma mercadoria como outra
qualquer e a sua insensibilidade ao contexto onde intervêm: num país onde o
salário mínimo pouco ultrapassa os 400 euros e o salário mediano os 700 euros,
tal prescrição traduzir-se-ia numa imensa catástrofe social.
Numa notável entrevista ao Jornal Esquerda de Junho de 2008,
Casimiro Ferreira, professor universitário e especialista em questões do
trabalho - chegou a fazer parte da Comissão do Livro Branco das Relações
Laborais, tendo-se demitido devido às orientações nela dominantes - identifica
o objectivo último da reforma laboral que o governo pretende implementar: "o
que está aqui em causa é tão somente a questão da adaptabilidade dos horários
de trabalho e naquilo em que a adaptabilidade dos horários de trabalho se
relaciona com o trabalho suplementar porque naturalmente num país como o nosso,
onde os salários são baixos as horas extraordinárias, como se costuma chamar,
servem como complemento de salário. A partir do momento em que se consigam
introduzir factores de adaptabilidade na flexibilidade horária ela traduz-se
também em flexibilidade salarial. E aí sim, aí baixam os custos de produção.
Essa é a verdadeira motivação para a reforma do código".
Junte-se a esta reforma, o alastramento da precariedade (os
trabalhadores com contrato a termo ganham em média 73% do salário dos
trabalhadores com contratos sem termo e o seu número aumentou, segundo um
estudo de Eugénio Rosa, em 205,6 mil relativamente ao 1º trimestre 2005) ou a
manutenção de uma taxa de desemprego em torno dos 8% e temos a austeridade
assimétrica permanente como horizonte intransponível das políticas públicas do
governo Sócrates, ou seja, temos um conjunto de políticas que, por acção ou
omissão, asseguram as condições sociopolíticas para que o fardo do suposto
ajustamento da economia portuguesa recaia sobre certas fracções do mundo do
trabalho. No país com maiores desigualdades salariais da Europa, a generalidade
dos gestores e certos grupos de trabalhadores privilegiados (que certamente não
estão na função pública) estão imunes a este ajustamento. Quer isto dizer que a
prescrição de Blanchard está hoje inscrita nas orientações do governo. Como
sempre, o exercício elegante do economista ortodoxo torna-se, na prática, num
horror económico. Um horror económico porque, além do mais, a prescrição não é
para todos, mas também porque a prescrição decididamente não funciona. Os
últimos três anos de deterioração das condições de vida de tantos trabalhadores
assalariados (o maior ajustamento salarial desde o início da década de oitenta)
apenas alimentaram uma trajectória económica medíocre. Esta revela uma
estrutura produtiva fraca e uma classe patronal pouco qualificada, viciada na
mediocridade dos baixos salários e que pode agradecer a demasiados economistas.
Economista e co-autor do blogue Ladrões de Bicicletas
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