Suponhamos que a miséria em torno do meu bairro me
incomoda (é o caso, mas não vou realmente falar disso). Suponhamos que me
horrorizam as atitudes dos vizinhos (alguns), que acham que se deve meter os
esfarrapados na cadeia.
Solução? Se tivesse miolos de galinha (os frangos que me perdoem por não ser
politicamente correcto), abria o meu frigorífico à comunidade. Assim mesmo.
Numa de bom samaritano. E se fosse suficientemente persuasivo, ao fim de 3
convidados, conseguiria convencer os seguintes a matar a fome com os cubos de
gelo que sobravam.
Opinião de José Pedro Fernandes.
Se resolvesse levar a coisa a sério, sem tentar salvar o
mundo sozinho, teria de me envolver e envolver muita gente, em acções planeadas
e concertadas, buscando uma repartição mais justa do produto social e combatendo
com persistência a injustiça.
Chega de fábula. As coisas não são simples. Dão trabalho.
Exigem de nós. E em boa verdade teremos de ter a humildade de reconhecer que as
coisas são demasiado complexas para pensarmos que já sabemos realmente como fazer,
no concreto.
Se passo o tempo a afirmar que é preciso construir um
programa político mínimo em que as pessoas decentes se reconheçam, é justamente
porque acredito que existe uma alternativa de esquerda ao neo-liberalismo. Por
convicção.
E isto faz-me chegar ao tema concreto que me levou a
escrever isto. A imigração na CEE. As notícias de mais alguns afogados em
frente a Gibraltar. O horror da situação de centenas e centenas de seres
humanos.
A direita europeia encontrou como solução internar os
emigrantes em centros de detenção. A esquerda protestou. E bem. Não é decente
tratar a miséria como crime. Mas calou o mais difícil. A solução porta-aberta é
insensata. Não há frigorífico suficientemente grande. Ou seja, o que defende a
esquerda como política de emigração europeia? Não sei. E gostava de chegar a
ter ideias claras sobre isto. Daí a minha fábula, como contributo para o
debate.
Se não acharmos normal dar a milhares de marroquinos,
senegaleses, nigerianos, etc, uma dieta de cubos de gelo teremos (os que nos
vemos a nós mesmos como gente de esquerda) de saber propor algo. Algo imediato,
articulado com algo a médio e longo prazo. Começando por ouvir o que dizem as
associações de imigrantes. Aceitando que o problema existe. Agora e não daqui a
bocado.
Até que mais alguns afogados não sejam apenas mais uma
notícia.
José Pedro Fernandes
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